quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Esquecida

             
                  Era uma mocinha muito bonitinha, mas tinha um problema: era esquecida. Esquecia de apagar as luzes, de pagar a conta de água, de guardar os livros, da comida no fogo e do leite no micro, do celular em algum lugar, do nome de filmes, do ritmo de músicas, da chave de casa pelo lado de dentro, de onde havia estacionado o carro no shopping, do cartão do banco, das reuniões semanais da empresa, dos aniversários de amigos, de tirar as lentes à noite, das consultas com o dentista, de tomar a pílula, de visitar seu irmão, que é alérgica a tomate, de pôr o despertador para despertar, de anotar na agenda os compromissos, de pagar a diarista, de retornar as ligações, das provas da faculdade, de comprar velas, de beber moderadamente, de ler o jornal, de onde pusera os óculos, canetas e cd’s... Enfim, ela se esquecia de tudo, e não era proposital seu esquecimento, apenas fora uma única vez; quando ela “se esquecera” do noivo no altar da igreja, e aproveitou sua fama de esquecida, para tirar proveito da situação.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Sra. Warlanda ajuda você

 
Boa noite. Não, boa noite, não. Para começar é melhor um olá, talvez? Não sei. Nunca havia escrito para uma revista antes, por isso não sei como começar. Bom, acredito que um olá está de bom tamanho. Gosto de revistas, livros, leio jornais também. Mas sempre vou direto aos pontos que me interessam: política, economia, atualidades. Não sou de ler horóscopo, sensacionalismo e outras coisas banais, essas eu pulo. Ou melhor, não lia. De umas semanas para cá, devido a alguns problemas, venho me sentindo diferente. E tal diferença foi que me fez começar a folhear essas páginas até então não exploradas, por tratar-se de assuntos que não estavam em meu âmbito de interesse. Confesso que eu nunca havia lido um horóscopo antes. Nunca acreditei nisso. Talvez quando o homem o criou funcionasse. Mas após a invenção da imprensa, e a propagação da internet, já não tenho tanta certeza quanto a sua veracidade, sendo que qualquer um pode escrever o que quiser. Mas, após minha mudança repentina de interesses, passei a lê-lo, mesmo que ainda me reste uma pontinha de dúvida. Agora, leio-o todos os dias, virei leitor fiel, não consigo ficar um dia sem descobrir o que os astros têm a dizer para mim, sempre na espera que algo bom seja revelado de antemão. Claro, minhas interpretações são sempre bem quistas, pois as interpretações que podem ser feitas em um horóscopo são inúmeras; mas sempre tento puxar as coisas para meu lado, fazendo pensamento positivo, na tentativa de atrair só coisas boas – como naquele livro que explica a lei da atração. Livro que após minha repentina mudança de interesses, já li duas vezes.

Nunca havia notado que nessa revista havia uma parte voltada para o emocional do leitor, em que pessoas enviam cartas ou e-mails, falando um pouco de si e de seus problemas do coração. Nada de disritmia cardíaca, angina ou problemas cardiovasculares; refiro-me no sentido figurado, coisas sobre o amor, sabe? Pois nesse ínterim de mudanças das ultimas semanas, descobri essa coluna intitulada “Sra. Warlanda ajuda você”. E, olha, percebi que aparece de tudo: desde pessoas que brigam com seus namorados pela forma que espremem o creme dental, até criaturas que se apaixonam pelo cunhado, tia-avó, sogra, ou objetos inanimados. Houve um caso de extrema curiosidade, que um rapaz afirmava ter se apaixonado por sua cabrita de estimação – codinome Anita, o dela, porque o dele não foi revelado – e jurava que a troca de afeto era recíproca! Fiquei pensando o que deve passar pela mente dessa pobre cabritinha. Ou melhor, dela e de seu esposo. Bom, o que quero dizer, é que após ler diversos relatos de pessoas expondo seus problemas e conflitos, e após Sra. Warlanda ter dado seu diagnóstico da situação que geralmente vem em forma de sábias palavras de conforto, estímulo ou consolo, decidi por abrir meu coração a todos – não é nada bizarro, como o caso de Anita, nem se refere a uma paixão proibida por minha tia. É apenas mais um caso de dor de cotovelo, como tantos que acontecem todos os dias. Serei resumido, tentarei não estender muito meu caso: Conheci uma pessoa, começamos a nos relacionar e terminou. Simples, não? Claro que não! Falando assim, até parece que estou vendo a situação de forma fria, o que não é verdade. É que esse é meu jeito, entende Sra. Warlanda? Às vezes falo pelos cotovelos sobre diversos assuntos; noutros não aprendi a não ser moderado - o que é esse caso. Mas preciso dizer que grande parte do problema que segue em minha vida, tem e não tem haver com esse fato consumado. Esse é um fato reservado, mas que faz parte de um todo, um todo composto de vários outros fatos isolados. Um conjunto de fatos isolados, que possuem em semelhança, não pessoas ou atitudes, mas os mesmos finais. Como se perder várias vezes em uma cidade, e chegar sempre na mesma praça; como assistir vários filmes, sempre com o mesmo tipo de fim; ou ouvir várias músicas que sempre falam sobre a mesma coisa. Frustrante, eu sei, mas com o tempo peguei a linha da coisa, e aprendi a limitar alguns sofrimentos desnecessários – pois com a prática, se tenta chegar à perfeição. E quando isso ocorrer, quem sabe eu não pare de sofrer no todo, e comece a perceber que realmente não há motivo para sofrer? Pois as coisas são ou não são; e se não o são, simplesmente, não são, compreende? Eu tento, mas até agora ainda não consegui ser assim. As coisas na pratica são muito mais difíceis do que na teoria, e elas nem sempre andam em paralelo, não acha?

Sra. Warlanda, já não sei se eu me relaciono com as pessoas erradas, por ter uma espécie de ima em meu corpo que as atrai, ou se as pessoas erradas é que se relacionam comigo, pelo inconsciente delas conseguir detectar quem é o alvo que está mais próximo e é o mais fácil em uma distância de mil metros, e elas virem direto em minha direção, e lançarem um sorriso como forma de aproximação, para assim, conseguirem atrair minha atenção. O que quero dizer é que não tenho sorte no amor. Acredite Sra. Warlanda, isso é realidade. Não consigo entender os gestos que me são transmitidos. Até estou lendo aquele livro que fala sobre as expressões corporais, que cada posição, cada gesto e interjeição, já diz tudo que a pessoa está sentindo em relação a você. Mas mesmo assim esta complicado. Por exemplo, se você se apega demais, eles se assustam e caem fora; se você não se apega, eles também se espantam, e caem fora; e se você tenta um meio termo, eles já estão a quilômetros de distancia de você. O que posso concluir é que tudo costuma acontecer somente por fora, e não por dentro! Warlandinha, Warlandinha, se conseguires me ajudar a entender esses gestos subliminares e obscuros, eu prometo ler sua coluna semanal pelo resto da minha vida. Ah, e eu ainda nem comentei sobre as esperas. As esperas são as piores: espera-se um telefonema, que não chega; ou um e-mail, que não entra; uma mensagem de boa noite, que não vem. E você nunca sabe o que houve, e fica no vácuo, e claro, vupt, eles somem. Sim, somem. Alguns trocam até o número do telefone. Pois bem, as esperas cansam, e esperar demais pode não dar retorno.

Eu estou escrevendo porque já estou desesperado, a verdade é essa. Não sei a quem recorrer. E graças a essa “fragilidade” que tomou conta de mim nas ultimas semanas, estou eu aqui, escrevendo esse e-mail, a essa hora da noite, porque o sono, não chega, e o amor, também não vem. Sra. Warlanda, não sou um rapaz feio, nem burro, nem interesseiro, ao contrario, sou o oposto disso. Mas não consigo compreender o que acontece, o que ocorre sempre que conheço alguém e esse alguém foge sem dar um tchau, um telefonema, ou dizer não querer nada. Sabe, se eles dissessem que realmente não querem nada, que apenas querem se divertir, eu ficaria até satisfeito, pois ao menos saberia que o problema não está em mim, e sim neles. Eles que não enxergam o quão bom é ter alguém para poder contar; alguém que te apóie; que te ouça e entenda; que te explique o que você ainda não sabe; que esteja ao seu lado nos momentos de tristeza e felicidade; que te cuide quando doente; que tenha desejos similares; que tenha os mesmos gostos para comida; que goste dos mesmos jogos, filmes e música; que saiba o que quer e onde quer chegar; goste de viajar, fazer amigos e aprender línguas; que cultive sonhos e saiba que sem eles, não se vive; que valorize os pequenos momentos; que faça de uma simples ocasião, um momento especial; que deseje ter um filho, ou ao menos, um cachorro para chamar de filho; que queira ter seu lar; que queira construir coisas juntos, nem que seja um castelinho de cartas; que queira acordar em um domingo ensolarado de primavera, e olhar para o lado, e poder saber, confiar, sentir, que sim, aquele cara que não é a perfeição em pessoa, que pode estar descabelado, com bafo de cigarro, e babando pelo canto da boca, sim, que é com ele que você pode contar, pois ele é seu amigo, parceiro e namorado. Enfim, alguém para quem você deseja ser alguém melhor do que é. Pois você o gosta. Ou nutre carinho grande. Ou o ama. Afinal, não há nada melhor no mundo que se deixar permitir amar alguém.

Bom, Sra. Warlanda, é isso. Para quem não fala muito sobre “coisas do coração”, me superei. Quem sabe alguém que leia não fique interessado, não? Bom, nunca se sabe. Só por via das dúvidas: sou loiro, tenho 1,90 de altura e olhos azuis. Ah, eu não havia me apresentado, meu nome é Josimar. Caso alguém se interesse mande e-mail, ou faça contato pelo intermédio da Sra. Warlanda, pois afinal, ela sempre está pronta para ajudar aqueles que sofrem de amor, com uma palavra de consolo, ou os que precisam ser amados, com palavras de estimulo, não é Warlandinha?


terça-feira, 13 de outubro de 2009

No ônibus

Como em todas as manhãs, Julio esperava no ponto de ônibus. E, como sempre, lia seu jornal, enquanto aguardava pelo dito cujo. Várias outras pessoas também aguardavam pelo coletivo, e se aglomeravam em blocos; alguns de braços cruzados ou ouvindo música; outros comendo algo, ou escorados nos ferros de sustentação. Não era um ponto de ônibus pequeno, era por se dizer, grande até. Mas a quantidade de pessoas que lá estavam, deixava o lugar um pouco apertado. Ali passavam duas linhas de ônibus: um que ia para o bairro, e outro que ia para o aeroporto. Para Julio, tanto fazia qual iria pegar, pois descia antes do final da linha de qualquer um deles, e o trajeto era igual para ambos até certo ponto. E como em todas as manhãs em que ia para o trabalho, o ônibus demorou, e como de hábito, ele olhava para os ponteiros do relógio que se distanciavam de um número ao outro rapidamente. E, claro, estava atrasado.
Tudo estava no mais perfeito atraso, quando todos avistaram a mulher do outro lado da rua. Não era uma mulher como todas as outras, pelo contrário: ela conseguiria chamar atenção mesmo que estivesse num lugar com mil pessoas. Tudo isso por causa de seu jeito despreocupado e desajeitado de andar, sem haver a mínima tentativa de aparentar certa discrição, ou talvez, leveza ao caminhar. Essa era sua forma natural de agir. Ela não era obesa, mas tinha muitos quilos a mais em seu corpo de estatura baixa. Julga-se não ser nada educada, pois mal atravessou a rua, abriu sua bolsa - enroscada em seu corpo como uma serpente - e de dentro, tirou uma quantidade grande de papéis, que não teve a menor dúvida em jogá-los por ali mesmo. E pela rua afora voavam papéis de bala, folhetos amassados, tickets de ônibus, como se tivessem asas e fossem lindas borboletas soltas pelo ar - o que de fato, não eram. Ouviram-se murmúrios e reclamações ao longo do ponto de ônibus. As pessoas estavam chocadas com tamanha falta de respeito. Todo o trabalho de conscientização que é feito pela mídia, envolto na sensibilização da população quanto ao lixo que produzem, pelo visto, não chegara aos ouvidos ou olhos dessa mulher. Houve um rapaz que gritou dentre as pessoas: Lixo se põe no lixo minha senhora. Óbvio que a mulher não iria deixar por menos. Ao chegar à parada, chegou chegando: com sua cara rabugenta, esbarrando nas pessoas, tentando atravessar a multidão que se aglomerava cada vez mais. O lixo é meu e eu coloco onde eu quiser, e depois de dizer isso se seguiu um palavrão ofensivo a mãe do corajoso rapaz que ousou recriminar a senhora mal educada. Todos fizeram sons de desaprovação. E mesmo assim, a mulher seguia dando importância alguma a opinião que as pessoas estavam tendo dela. Julio que continuava em pé, com o jornal aberto, já não conseguia mais prestar a atenção no que lia. Apenas notara de longe sua aproximação que vinha em direção onde estava. Ele tentou agir com mais naturalidade possível. Logo a mulher alojou-se ao seu lado, batendo com sua bolsa e diminuindo o espaço entre ele e o jornal. Julio tentou ignorar a presença da aberração que estava próxima a ele, o que não era fácil, conquanto ela volta e meia fazia-se notar muito facilmente. Fechou o jornal, certo que já não era mais possível ler noticia alguma. A mulher era muito espalhafatosa, e chamava a atenção por ser patética e desleixada. Não havendo mais clima, nem espaço para leitura, guardou o jornal na pasta. Nisso um ônibus apontou no horizonte. E todos resolveram ir bem para frente, para facilitar a entrada no coletivo. Quando Julio pensara, a senhora gorda já havia se enfiado em sua frente, fazendo ele se desequilibrar com a rapidez e a grosseria do gesto. O ônibus parou. As pessoas começaram a entrar na medida do possível. Julio e a mulher foram os últimos. A mulher entrara primeiro e ele, após. O ônibus estava lotado, e o único espaço que sobrou era próximo a porta de entrada. E assim foram: A mulher na frente, batendo e xingando as pessoas à medida que se sentia incomodada, e Julio, atrás dela, levando cotoveladas e sentindo náuseas, pois a mesma também tinha problemas com mau cheiro. O ônibus andava, mas as pessoas pareciam não descer, o que dificultava que ele passasse adiante, tentando enfim, deixar a mulher para trás. Com certo esforço, as pessoas começaram a movimentar-se dentro do coletivo, e desciam em suas respectivas paradas. Julio conseguiu movimentar-se também, mas dependia da mulher para que pudesse chegar mais para frente. Aos poucos, ambos saíram de perto da porta, chegaram perto do cobrador, a mulher xingou o cobrador pois alegava que o troco estava errado, e novas cotoveladas e bolsadas para todos os lados. Passaram a roleta, e a mulher em seguida esgueirou-se para um espaço vago. Julio, que ainda mantinha-se atrás dela, dera graças a Deus que poderia ultrapassá-la e livrar-se de tamanho incomodo. Mas quem disse que havia uma brecha. A mulher posicionou-se de tal forma, que ocupou seu espaço e grande parte do corredor também. Delicadamente, Julio tentara passar, fazendo um pouco de esforço, mas a mulher não se movia centímetro sequer; após, com um pouco mais de força, novamente tentara abrir espaço, mas a única alteração que houve na posição da mulher, foi um giro de cabeça, com um olhar fuzilante para ele. Julio, já estava de saco cheio. Pedira, com licença, mas seu tom de voz não soara bem aos ouvidos implicantes da mulher briguenta. E ela então começou sua ladainha: Mas que absurdo! Um homem empurrando uma mulher! ONDE JÁ SE VIU ISSO? Que falta de respeito! O que você está pensando seu... (duvidara da integridade da mãe de Julio)! Empurrando uma mulher! Covarde, ordinário, seu... (duvidara da sexualidade de Julio...)! No mínimo você deve ter inveja das mulheres, por que você não é uma (...), e queria ser. Seu abusado! Que absurdo! Viado sem vergonha! Onde já se viu isso? ONDE? ... (E continuara com a sessão desaforo...).
Tudo isso foi o suficiente para ele virar chacota dentro do coletivo. As pessoas não sabiam se riam da mulher louca, que urrava enlouquecidamente ofensas contra ele, fazendo gestos largos tentando puxá-lo pela camisa, ou se riam dele, que recebia mudo uma tempestade de xingamentos e palavrões que colocavam em jogo sua dignidade. E todos no coletivo riam sem parar, e alguns inclusive, ajudavam a mulher gritando alguns ai ai ai, ou, dá licença que a mulherzinha quer passar!
Julio puxou a campainha. Seu rosto prendia fogo, não gostava de se meter em baixaria. Nunca passara tamanho constrangimento diante de tantas pessoas em toda a sua vida. Descera umas três paradas antes do que devia, e as pessoas ainda continuavam a rir, e a mulher a gritar. E, agora, estava mais atrasado ainda para o trabalho. Mas de uma coisa estava certo: Nunca mais pegaria ônibus naquela parada.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Ela



Passara pela mão de muita gente sem ser considerada leviana. Há muito tempo encontrasse nessas indas e vindas, com pessoas que sequer imaginava que existissem e em lugares inusitados. E isso já ocorre há tanto tempo... Desde o começo, já rolava de mão em mão, já era dada em troca de algo valioso, ou até mesmo, em troca de um serviço qualquer. Nunca soubera o nome de seus donos – e já tivera muitos -, embora tenha contato direto, sentindo dia após dia em seu corpo, o toque das mãos delicadas ou estúpidas que a amparam; Apenas possui silenciosa desconfiança de um nome próprio – o seu - e uma respectiva aparência – a sua -, tatuados em sua estreita matéria, sendo ofertado a ela por isso, valia diante de outras coisas maiores e mais significativas. Sua existência é repleta de altos e baixos, e se a conhecerem, perceberão inconstância apenas em fita-la: dia com um, dia com outra, coisa bissexual, que não escolhe quem, quando ou onde será desfrutada ou rasurada. Seu destino a Deus pertence. Fora trazida de longe para cá. Tivera a sorte de percorrer vários lugares. Algumas vezes fora olhada com ganância por ter sido símbolo do status de alguém, e em outros momentos, não carregara importância alguma, sendo levada de qualquer jeito, dada em troca de um cachorro-quente de rua ou oferecida a uma vadia pela troca de seus vulgares serviços. Fora bela, mas com o tempo perdera os bonitos traços da juventude. E então, depois de muitos anos percorrendo lugares, sentindo corpos, sendo cúmplice, amada por todos, usada, usada e usada, chegara seu fim. Naquele dia de chuva, em que seu ultimo dono a carregava desconfortavelmente no bolso da camisa suada, ao percorrer uma rua lamacenta, aos tropeços, cheirando a cachaça, em que ela esgueirou-se e voou para longe, até cair em uma poça d’água, gerada pela chuva que a pouco havia parado. Seus detalhes esmaecidos, perderam toda e qualquer vivacidade quem ainda possuíam; Seu rosto, nome e valor, gravados em seu corpo, aos poucos desprenderam-se em inúmeros fragmentos; Sua lucidez, esvaia-se junto com a vida que restava, e a água lamacenta levava sua matéria fragmentava para ser depositada por fim em algum fétido bueiro na calçada.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

L E T R A S

Sou feliz com letras, não com números. Descobri isso ontem, ou melhor, tomei consciência e resolvi encarar o fato de frente. Sabe quando você está perdido e segue um caminho? Pois bem, dizem que quando não se sabe para onde ir, qualquer lugar serve. Tudo balela. Peguei o caminho errado quando não tinha para onde ir, e tentei, arduamente segui-lo, e em vários momentos defrontei comigo mesmo, e várias vezes entrei em crise por isso. Tentei acreditar no que estava fazendo, que eu poderia gostar do que eu fazia, mas foi tudo em vão. Tempo perdido. No intimo, sempre soube que não conseguiria ser complacente com isso até o fim dos meus dias. Você não consegue afundar uma bóia dentro do mar, pois ela sempre emerge, entende? É a mesma coisa: embora tenha havido momentos que eu tenha me esquivado sem aranhões de algumas situações, e tenha me saído realmente bem naquilo que fiz, isso tudo não é concreto e nem suficiente, nem tem força o bastante para definir quem eu sou. Segui o caminho errado durante muito tempo sem saber, fui a fundo, entrei na floresta e ela era escura, eu sentia que era fria, mas pensava que mais adiante poderia ser quente. Esperei por isso. Caminhei muito para chegar onde estou – e não havia lanterna, isqueiro, vela, nada para me mostrar o caminho que eu percorria. Tateava como podia, e sentia coisas que não definia. Em alguns momentos andei de joelhos, noutros estive de quatro como um bicho e pude sentir as pedras no chão. Também eram geladas, e ásperas. Meu Deus, sempre esteve tudo tão claro, a luz não era fator necessário, e só agora é que percebo. E, somente agora, me vem essa repentina certeza em mente de que não é aqui que devo estar. Esse não é meu lugar. Não posso mais conviver com isso; cansei de ser racional, preciso de mais irracionalidade em minha vida. Queria que todas as fórmulas matemáticas que aprendi, toda a prática em cálculos, toda destreza no uso de calculadoras e tabelas que eu tenho, fossem para o espaço, ou ao menos, desaparecem sem deixar rastro. Quero ser um tecedor de letras. E quero a pratica em criar estórias. Quero tecer as letras seguindo o fio da minha imaginação, envolvendo tudo o que julgar necessário. E formar palavras, que juntas, se transformarão em frases; e que em conjunto, terão um significado maior. Porque sozinhas não são suficientes, são fraquinhas e não se bastam, não têm o mesmo poder ou ardor. Mas em grande quantidade, as palavras são reveladoras: desmistificam mistérios, dão luz a fantasias e asas a imaginação, criam ficção, são porta-vozes de noticias, reproduzem um universo único que só existe na cabeça daqueles que ousam transferir essa realidade para o papel. Com os números não é assim, não há nada a ser revelado. Eles são muito exatos e precisos, e isso já basta para defini-los. Ruim definir algo em duas palavras. Preciso de algo com mais teor e conteúdo, não posso fazer algo definido de forma tão monótona e vulgar. Eu quero mais. Estou em busca de algo que vá além do que posso compreender, e que mesmo assim, seja motivo para eu sorrir todos os dias. Preciso de mais emoção. E também encontrar e descobrir e desvendar aquilo que ainda não conheço e não entendo, assim como um descobridor de eventos cotidianos e fatos raros. Isso sim, me soa perfeito.